segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Quase Haikai

“O haikai é mais do que uma forma de poesia; é uma forma de ver o mundo. Cada haikai capta um momento de experiência; um instante em que o simples subitamente revela a sua natureza interior e nos faz olhar de novo o observado,
a natureza humana, a vida”. (A. C. Missias, biólogo e poeta americano)

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despido do medo
desvendo o segredo
e tarde é cedo

...

pintei o tempo
faltou tinta
sobrou movimento

...

olhei os traços
de teu semblante
perdi meus passos

...

olhei o reflexo
e ele me olhou
e ficou perplexo

domingo, 13 de dezembro de 2009

Ao tomate

O tomate
automaticamente
a mente o toma
matematicamente

o põe em plano
se opondo a ele

separa de si
seu paradeiro
supera-o

matematicamente
a mente o toma
automaticamente
o tomate

Geografias, de Julio Cortázar

"Demonstrando que as formigas são as verdadeiras rainhas da criação (o leitor pode tomá-lo como uma hipótese ou uma fantasia: de qualquer maneira lhe fará bem um pouco de antropofunguismo), eis uma página de sua geografia:

(p. 84 do livro; assinalam-se entre parênteses os possíveis equivalentes de determinadas expressões, segundo a clássica interpretação de Gaston Loeb.)

'... mares paralelos (rios?). A água infinita (um mar?) cresce em certos momentos como hera-hera-hera (idéia de uma parede muita alta, que expressaria a maré). Se a gente vai-vai-vai-vai (noção análoga aplicada à distância) chega à Grande Sombra Verde (um campo semeado, um mato, um bosque?) onde o Grande Deus eleva o celeiro contínuo para suas Melhores Operárias. Nesta região abundam os Imensos Seres Horríveis (homens?) que destroem nossos caminhos. Do outro lado da Grande Sombra Verde começa o Céu Duro (uma montanha?). E tudo isso é nosso, mas com ameaças.'

Essa geografia foi objeto de uma outra interpretação (Dick Fry e Niels Peterson Jr.). O trecho corresponderia topograficamente a um pequeno jardim da Rua Laprida, 628, Buenos Aires. Os mares paralelos são dois pequenos canais de esgoto; a água infinita, um banho para patos; a Grande Sombra Verde, um canteiro de alface. Os Imensos Seres Horríveis insinuariam patos ou galinhas, embora não se deva descartar a possibilidade de que realmente se trate de homens. A respeito do Céu Duro desenvolve-se uma polêmica que não acabará tão cedo. A opinião de Fry e Peterson, que vêem nele uma parede de tijolos, opõe-se a de Guilherme Sofovich, que presume um bidê abandonado entre as alfaces."

CORTÁZAR, Julio. Histórias de cronópios e de famas. 6.ed.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. p. 69-70.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Televisão embaçada

Neste grande campo de fortalezas
Sufoco
Diante da possibilidade do futuro
e da impossibilidade do presente
cada vez mais futuro ...

Venho, protegido
Em suave turbilhão de ondas
Tão rápido que se torna lento
Volto sem acreditar
Para fora de meu espelho

A gente ávida, não acha
A máquina se encaixa aí
Fazendo de tudo

A mente em segundos, plano
Caricatura de si mesma

sábado, 5 de setembro de 2009

Criação

Para criar
Tenho que me tornar o louco
Fazer pouco
De minha seriedade

Sereno e explosivo
Tecendo cada fio com tal esmero
Que a doçura possa ser derramada
De cada sílaba utilizada

No profundo daquilo que é alma
Se ver em imagens de reflexos
Gritar e ouvir os ecos
Gravando-os em vã memória

Um caminho de deslizante limo
Uma beira de caudaloso rio
Corda bamba
Sobre um jardim de diamantes

sábado, 25 de abril de 2009

Quase sendo

Quase sempre tem algo a mais pra se falar ... algo que viria logo após um suspiro, e que foi calado por um gesto ou palavra. Quase sempre tem algo que quase foi. E em todo esse quase sempre, quase nunca dá pra achar um espaço pra se encaixar um pedaço do que se quer dizer. Ou quase sempre dá.

Eu tenho vivido de absorção quase pura. A todo momento. Mal consigo escrever. Uma vez um amigo me disse que alguns de nós temos fases de absorção, aonde lemos, escutamos, vemos e sentimos; e temos fases de criação, aonde sintetizamos com imaginação e arte aquilo que foi absorvido. Existem pessoas que vivem esses processos simultaneamente. Eu creio que vivo o primeiro, já há algum tempo.

Esse ano tem sido bom para mim. Bom e ruim. Estou mais lúcido, mais acordado para o mundo, e tenho medo disso. Por mais que a dor me sufocasse quando eu era um mero sonhador, eu tinha meus sonhos para me confortarem. E agora eu tenho minha lucidez para que os pesadelos não me atinjam. Já sinto uma necessidade insuportável e inadiável de auto-conhecimento. Mas preciso de sonhos que me digam, me digam mais que qualquer manual ou bula possam dizer sobre o que eu sou. Eu sou meus sonhos, no fundo é isso o que todos somos.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Quonde ?

Perco meu tempo , mas não perco meu relógio dourado .
Onde poderei me perder essa noite ?
As vagas impressões de doce névoa que já passou
renovam as visões de um futuro obscuro , que não chegou .
Sentir ... se deixar levar , já não é uma questão de apenas existir .
Pois o pensamento te oferece rédeas , todo o tempo ,
para controlar o intenso flutuar de ser .
E o descontrole completo é vislumbrado ao lado
Como o merecido e desejado caos dos sonhos mais vivos .
Mas aí se pisa firme , os pés fincados no chão ,
feito estacas no coração noturno ...
E o vento do coração seca , e se deixa cegar ,
Estagnando qualquer tentativa de se deixar levar ...
E , pego pela rede imensa do cotidiano ,
o apego e um silêncio trêmulo
constróem morada dentro de ti .