sábado, 27 de março de 2010

Poema em linha reta (Álvaro de Campos)

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó principes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

(de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa)

sexta-feira, 26 de março de 2010

Sabedoria Zen - A grande estrada


"Para alcançares a grande estrada, não haverá portões. Haverá, sim, mais de mil caminhos diversos a escolher. Uma vez atravessada a barreira sem portões, conseguirás andar livremente pelos caminhos entre o céu e a terra."

Wu-Men Hui-K´ai

quinta-feira, 4 de março de 2010

O último extermínio do gado.

... dos Registros Históricos do futuro de lugar nenhum.


Eis que o recém eleito governo mundial de posse de total controle do globo
Impõe, como medida emergencial
a abolição do consumo de animais
para alimentação do ser humano


Com a medida, espalhou-se o pranto
da maioria dos terráqueos
Pois do sabor de que gostavam tanto
não provariam mais sequer um naco

Porém, naquela hora decisiva
e numa lucidez um tanto atrasada
Não se pensou em outra medida
tão urgente a ser aplicada


Haveria, então, um último banquete
onde nos fartaríamos de toda a carne
Um derradeiro regozijo e deleite
Das entranhas provindas do abate


O sangue dos bichos fartaria
a sede da terra desnutrida
A boca salivante mastigaria
a morte do que já foi vida


O homem, então, em seus altares da morte
se fartaria em gozo, inocente pecado
Após o sacrifício, o último grande corte
não mais o animal seria gado