quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Derretendo

Meus dedos estão derretendo. Enquanto minha pele, ossos, músculos e sangue escorrem derretidos por meu braço, eu penso em alguma coisa que poderia evitar o derretimento do meu corpo físico, que já ocorria. Pelo menos meu cérebro ainda não começou a derreter, mas é só uma questão de tempo. Será que, quando meu cérebro começar a derreter, eu perderei as funções vitais mas continuarei consciente por algum tempo? Bom, não é hora de me preocupar com isso, pois meus braços estão quase que completamente transformados em um líquido viscoso. Minhas pernas também estão em estado crítico. O que me espanta é que não sinto dor ... e à medida que vou me desfazendo do meu corpo, ou ele vai se livrando de mim, sinto uma clareza de pensamentos que nunca senti antes. Quase posso alcançar o céu. Sinto que perder meu cérebro não fará muita diferença nesse momento, pois já virei luz. E o que sobrou do meu corpo escorre pelo ralo mais próximo. E eu já não sou mais quem eu pensava ser, tampouco o que via no reflexo do espelho. Então eu sou um par de asas. Eu vou sair daqui agora, eu vou voar, atingir o espaço, todo o espaço. Já não tenho mais forma definida, e já não sou mais preso pelo tempo. Eu sou o espaço e o espaço é o que sou. Onipresente e atemporal ...

(texto escrito em 2006)

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Você

Andar descalço ao seu lado, e comparar o tamanho dos pés (e rir pelo seu ser bem menor). Inocência quase infantil, viver lúdico. Fazer cócegas na sua barriga, até você me implorar para parar, e depois que eu paro, você vem e desconta em mim, até me jogar no chão. O sol brilhando e iluminando o lindo gramado, no qual corremos até cansar, nos deitamos e nos amamos. E no meio dos sussurros ofegantes do amor, sorrir ao te ver completamente entregue, indefesa, em uma grande volúpia, da qual eu faço parte, e nos tornamos um só ser. Fazer carinho em seus cabelos, com você em meu colo, e comentar sobre como gostamos daquele velho jazz, sobre como aquilo é uma beleza incomensurável. No meio de uma longa conversa, me dar conta de como seu sorriso é lindo, e ver seus olhos brilharem de timidez e deleite com o meu comentário. Você ficando brava e dando pequenos socos em meu braço quando eu olho uma moça bonita passar na rua, mas depois me desculpando com um beijo que me faz esquecer qualquer rabo de saia. Eu segurando seu corpo na água do mar, pra você boiar sem preocupação, e esquecer as agruras da vida. O velho clichê: ficarmos deitados contando as estrelas, ou as nuvens, se for dia. Tomar um porre juntos, eu tocando meu violão e nós cantando, depois rindo, depois fazendo amor e dormindo imediatamente após, com você aninhada em meu peito. E o mundo se torna isso: você e eu, e todos esses pequenos grandes prazeres.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

É óbvio

Entre soluços ... uma solução ?
Entre esboços ... uma resolução ?

Se você quiser, pode me dar
seu futuro de presente.
E eu passo a limpo
todo meu passado,
e preencho
o furo do meu futuro.

Quero somente o óbvio que vem
na medida do bom ócio.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Admirável homem novo

"Vemos, pois, que a tecnologia moderna tem conduzido à concentração do poder econômico e político, e ao desenvolvimento de uma sociedade controlada (implacavelmente nos estados totalitários, polida e imperceptivelmente nas democracias) pelo Alto Negócio e pelo Alto Governo. Mas as sociedades são compostas de indivíduos e só são boas na medida em que ajudam os indivíduos a realizarem suas potencialidades e conduzem a uma vida feliz e criadora. Como é que os indivíduos foram afetados pelos progressos técnicos dos anos recentes? Eis a resposta dada a esta interrogação por um filósofo-psiquiatra, Dr. Eric Fromm: 'A nossa sociedade ocidental contemporânea, a despeito do seu progresso material, intelectual e político, conduz cada vez menos à saúde mental, e tende a sabotar a segurança interior, a felicidade, a razão e a capacidade de amor no indivíduo; tende a transformá-lo num autômato que paga o seu fracasso humano com as doenças mentais cada vez mais frequentes e desespero oculto sob um frenesi pelo trabalho e pelo chamado prazer.'
As nossas 'doenças mentais cada vez mais frequentes' podem achar expressão em sintomas neuróticos. Estes sintomas são evidentes e extremamente perigosos. Mas, 'guardemo-nos', diz o Dr. Fromm, 'de definir a higiene mental como prevenção de sintomas. Os sintomas, como tais, não são nossos inimigos, mas nossos amigos; onde há sintomas há conflito, e conflito indica sempre que as forças da vida, que porfiam pela harmonização e pela felicidade, ainda lutam. As vítimas de doença mental realmente perdidas encontram-se entre aqueles que parecem mais normais. 'Muitos daqueles que são normais, são-no porque se encontram tão bem adaptados ao nosso modo de existência, porque as suas vozes humanas foram reduzidas ao silêncio tão cedo em suas vidas, que nem lutam, ou sofrem, ou exibem sintomas como o neurótico.' São normais, não no que pode chamar-se o sentido absoluto da palavra; são normais somente em relação a uma sociedade profundamente anormal. O seu perfeito ajustamento a esta sociedade anormal dá a medida da sua doença mental. Estes milhões de pessoas anormalmente normais que vivem sem ruído numa sociedade a que, se fossem seres plenamente humanos, não deveriam estar adaptados, ainda acariciam 'a ilusão da individualidade', mas de fato foram em larga medida des-individualizados. A sua conformidade está a evoluir para algo como a uniformidade. Mas, 'uniformidade e liberdade são incompatíveis. A uniformidade e a saúde mental são igualmente incompatíveis... O homem não está feito para ser um autômato, e se se transforma em autômato, a base da sua saúde mental está destruída'"

HUXLEY, Aldous. Regresso ao Admirável Mundo Novo. Lisboa: Livros do Brasil. (ano não informado). p. 50-52

domingo, 17 de outubro de 2010

Gente que viaja

Alguns passam apressados, para que não percam o horário de partida. Outros, mais lentos, têm tempo, ou já o perderam. Quando em vez, alguém parece estar sem destino. Quem são ?
Famílias que viajam de mudança, procurando novos ares e esperanças. Preocupados viajantes que vão à negócios, fechar um acordo, ou desfazer. Pessoas com saudades ou que, apenas por necessidade, vão visitar parentes, rever amigos, conferir como estão os lugares onde cresceram, e dos quais a vida os afastou.
Atrasados, tristes, esperançosos, automáticos, triunfantes, saudosos, sérios, despreocupados.
Até quem sabe ... por um olhar e pela bagagem, me pareceu que uma alma solta e vaga escolheu um destino qualquer, por querer uma vida completamente nova, esquecendo de si mesmo, ou por participar do grupo das almas aventureiras, que se partilham em mil, são todos nós e ninguém, e carregam o peso de todas as solidões. As solidões dos viajantes, de todos, que rumam ao lugar incerto.
Algumas passagens custam pouco. Outras, tiveram como preço as últimas economias do viajante; nesses passes estão depositadas esperanças de renovação, algo que vale como a última chance, derradeira tentativa da pessoa que tem o brilho da fé em seus olhos. São muito mais que passagens, são chances de uma nova vida.
E das mais variadas formas, múltiplos comportamentos, os objetivos, os sonhadores, os saudosos e os sem destino: todos trocam olhares e seguem seus passos, em um mesmo lugar.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Passado por um rio

Era natural que isso acontecesse. Eu mudei, todos mudaram.
E foi preciso romper. Alcançar outro eu, uma nova identidade, mais evoluída.
Quando olho para aquilo tudo, vejo senão o passado quase congelado.
E quando entro em contato, me sinto desconfortável ... como se entrasse num lugar onde a música não estava boa e, apesar de eu até poder me divertir um pouco, provavelmente o resultado final não seria bom, eu não me sentiria bem ali.
Como se eu tivesse pausado a imagem de um espelho, e anos depois olhasse para este mesmo espelho e não visse mais meu reflexo.
Agora, reconstruir. Galgar novas conquistas, ressignificar as velhas.
O ideal seria romper com certas coisas para além do poder da memória. Seria submergir meu ego, e emergir novo em folha.
Abandonar as reminiscências do passado, mas elas insistem em voltar. Meros devaneios tolos, a me torturar.
Ora, o ideal é quase sempre impossível. Sempre sobra algum peso do passado.
Mas já não há nada como era antes.

Um rio, da nascente à foz. Suas águas brotam do subterrâneo, rompem a escuridão do solo e impõem-se perante o ar livre. Ora suavemente, e às vezes em fluxo frenético, segue seu caminho por entre os relevos que, até certo ponto, o determinam. Passa pelas mais diferentes planícies, entre altas montanhas, cercado de densas florestas ou em campos abertos. E, finalmente, desemboca no mar. Ao longo de todo o seu curso, o rio sofreu inúmeras mudanças. Muito foi perdido e muito foi acrescentado. Sendo ele, apesar das diferenças em suas variadas alturas, o mesmo, suas partes se comunicam entre si. Melhor dizendo: as partes próximas à nascente se comunicam com as próximas à foz. Mandam seus fluidos para lá. Isso, o rio não pode evitar.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Onironauta

Quando estou no mundo onírico, entrelaçado nas redes maravilhosas de Morfeu, não sei dizer se aquilo é realidade, aquela com a qual a gente está acostumado, ou não. Naquele mundo fantástico, o absurdo acontece, mas aos sentidos me parece que aquilo é tão real quanto qualquer outra coisa. Posso estar voando, organizando planos para derrotar os invasores alienígenas, qualquer coisa ... E tudo aparenta ser tão ou mais verossímil do que quando coloco meus pés descalços sobre o frio chão de madeira, e caminho em direção à água que lavará meu rosto.
E quando estou aqui, entre as paredes do cotidiano do mundo dito real, que talvez não seja mais real do que qualquer outra coisa fora da realidade, não posso me sentir como me sinto nos sonhos. As possibilidades se limitam, ficam quadradas, dentro de uma caixa. Em tudo há censura, há gravidade, há limitação corpórea. Sinto muitas vezes que isso aqui nem é tão real assim. Minha verdade particular esbarra nas outras e, do choque, sinto que estou acordado. E a maneira que encontro de me aproximar dos sonhos, mas tendo essa realidade como base, só é encontrada no torpor da embriaguez dos sentidos, seja qual for a causa desta. Um dia talvez eu acorde, tal qual Gregor Samsa na "Metamorfose", transformado em um gigante inseto. E, mesmo que seja a realidade dita real, ainda assim eu acharei que esse absurdo todo só pode ser um sonho.

Acordei um dia e senti o silêncio total. Senão de minha parte, não havia qualquer movimento ou ruido. Saí nas ruas e não encontrei viva alma. Nem animais, nem humanos. Depois de algum tempo, vi que estava completamente sozinho na Terra. Pude constatar isso ao sobrevoar cada metro quadrado do planeta, num bater de braços tão rápido quanto o som. Ao chegar no Japão, me entediei e resolvi voltar para casa. Chegando lá, preparei um chá de patas de galinha e deixei esquentar na geladeira. Joguei o chá sobre minha cabeça, e fui dormir. Sonhei então que eu, sentado confortavelmente em uma cadeira, escrevia um texto sobre os sonhos.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Antimonotonia

"Muito se teria de dizer sobre esse contentamento e essa ausência de dor, sobre esses dias suportáveis e submissos, nos quais nem o sofrimento nem o prazer se manifestam, em que tudo apenas murmura e parece andar na ponta dos pés. Mas o pior de tudo é que tal contentamento é exatamente o que não posso suportar. Após um curto instante parece-me odioso e repugnante. Então, desesperado, tenho de escapar a outras regiões, se possível a caminho do prazer, se não, a caminho da dor. Quando não encontro nem um nem outro e respiro a morna mediocridade dos dias chamados bons, sinto-me tão dolorido e miserável em minha alma infantil, que atiro a enferrujada lira do agradecimento à cara satisfeita do sonolento deus, preferindo sentir em mim uma verdadeira dor infernal do que essa saudável temperatura de um quarto aquecido. Arde então em mim um selvagem anseio de sensações fortes, um ardor pela vida desregrada, baixa, normal e estéril, bem como um desejo louco de destruir algo, seja um armazém ou uma catedral, ou a mim mesmo, de cometer loucuras temerárias, de arrancar a cabeleira de alguns ídolos venerandos, de entregar a um casal de estudantes rebeldes os ansiados bilhetes de passagem para Hamburgo, de violar uma jovem ou de torcer o pescoço a algum defensor da ordem e da lei. Pois o que eu odiava mais profundamente e maldizia mais, era aquela satisfação, aquela saúde, aquela comodidade, esse otimismo bem cuidado dos cidadãos, essa educação adiposa e saudável do medíocre, do normal, do acomodado."

HESSE, Herman. O lobo da estepe. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.

domingo, 19 de setembro de 2010

Das penas e papéis

No fim da noite, acabam por se tornar irrelevantes. Cessam todas as formas, devaneios ortográficos de falso sentido. Sem sentido.
No começo do dia, calam e observam. Saem sem dizer, mesmo não saindo. Em seu assobio, soam maiores que símbolos. E cantam o ar.
E antes de serem si mesmas, elas o são. E ... talvez nunca, nunca foram.
Tanto fazem e ... tanto faz.
Voam aos ventos suas cinzas de idéias vivas. E onduladas, nem sempre suaves, melodias.
No fim não existem, e todas essas coisas são mais puras.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Metáfora da escada

Imagine uma escada. Do jeito que penso, ela seria uma escada de degraus da cor da própria madeira de que seriam feitos.
Acima, no próximo andar, tudo que se vê é escuridão. Dos lados, também.
Tão somente a escada, em seus tons de sépia e escuridão envolvente.
Os degraus não ficam firmes, eles se movem de um lado para o outro, sem padrões, simplesmente vão se movendo, ora mais devagar, ora com mais vigor.
Daí segue que, para subir essa escada, e alcançar o mistério do negrume que há no piso acima, tem que se tomar um cuidado imenso. E não pense que você tem a opção de não subir.
É preciso que se suba. É preciso, e você sabe disso, chegar lá em cima e desvendar o mistério que há naquele lugar, pois toda a escuridão é um imenso mistério.
Do piso em que você se encontra, há apenas uma pequena parte de chão para que você coloque os pés e se deite para descansar, eventualmente. Ao redor, todo o precipício.
Então não é possível que você consiga se divertir e se satisfazer com as escassas possibilidades que esse minúsculo pedaço de chão tem a oferecer.
Você precisa subir.
Mas lembre-se: os degraus da escada se movem de um lado para o outro, em movimentos surpreendentes.
Pois, é preciso tomar muito cuidado. E saiba que o primeiro degrau vai ser o mais difícil de subir.
A sabedoria que é necessária para galgar o próximo passo em direção ao chão mais elevado, virá com calma e observação. Você primeiro precisa conhecer as nuances e detalhes do degrau em que você se encontra. Vai demorar um bom tempo para você se acostumar com cada novo degrau.
Mas não tenha medo. Continue subindo, não se conforme em voltar para aquele piso frio em que você dormia.
Suba a escada, com toda a dificuldade que você encontrar. E aquela escuridão do fim da escada, do segundo andar, pode ser que te recompense com o cair do véu do mistério ali existente.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Do alto da montanha

O meu time perdeu.
Minha artéria aorta não distribiu mais o sangue da mesma maneira.
Minha garota sumiu.
Meu pé já não se mexe do jeito que sambava.
Minha roupa manchou.
Minha guitarra não toca já os teus vinte anos de blues.
Meu sorriso murchou.
O pé de caju que eu tenho no quintal agora está cheio de pragas.

Vórtice frenético de mutações mundanas, dando um chute na bunda da alma.

É, bicho ... no fim aquela velha pergunta "quem sou eu ?" não parece tão piegas assim ...

Você pode fugir de tudo e de todos, mas não pode fugir de si mesmo. E quando você escala aquela alta montanha, que você teve tanto esforço pra subir, treinou tanto, tentou várias vezes antes de conseguir ... e quando você está lá em cima, e lança um grito, o mais forte possível, para o vasto horizonte que se apresenta diante de ti, e não encontra nele nenhum eco ... Quer dizer que você falhou, ou apenas constata que perdeu todo esse tempo escalando a montanha errada ?

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Paisagem

Dos campos verdes quase escuros que se estendem ao olhar, os canais de água brilham em laranja fluorescente, em espirais que desafiam a gravidade.
Gaivotas pretas em linguagem antiga se comunicam e gorjeiam em rápido passeio pela superfície descampada.
Frenéticas mutações de múltiplas cores se agitam formando vórtices de sucção dos tempos que o observam.
Em suaves e depois intensas ondas, tapetes vermelhos desfibrilam o céu roxo já com muita pressa, antes que as nuvens pulsações cessem seu jogar de raios na superfície despovoada.
O eco de fantasmas murmurantes já se ouve de dentro das cavernas elevadas por sobre a terra, verdadeiros labirintos de escuridão infinita.
E todos os seres que ali voam, em direção das florestas do absurdo , se desfazem em intensos feixes de luz, derretendo metais que se transfiguram e escoam por vastos canais, em múltiplas direções.

[ouvindo um álbum do Tangerine Dream, "Phaedra", de 1974]

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Que sabe a Razão ?

"(...) Contudo, perdoai-me por ter-me posto assim a filosofar. Não o esqueçais: tenho quarenta anos de subsolo. Permiti me soltar as rédeas à minha fantasia. Vede, senhores, a razão é uma coisa excelente; isso é incontestável; mas a razão é a razão, e não satisfaz senão a faculdade de raciocínio do homem, enquanto o desejo é a expressão da totalidade da vida, isto é, da vida humana inteira, inclusive a razão e seus escrúpulos; e, se bem que nossa vida, tal como se exprime assim, se revista frequentemente de um aspecto muito velhaco, nem por isso é menos vida, e não a extração da raiz quadrada.
Assim comigo, por exemplo: quero viver, naturalmente, a fim de satisfazer minha faculdade de existência em sua totalidade e não para satisfazer unicamente minha faculdade de raciocínio, que não representa, em suma, senão a vigésima parte das forças que estão em mim. Que sabe a razão? A razão não sabe senão o que aprendeu (ela não saberá nunca outra coisa, provavelmente; e, embora isso não seja uma consolação, não o devemos dissimular), ao passo que a natureza humana age com todo o seu peso, por assim dizer, com tudo o que ela contém em si, consciente e inconscientemente; acontece-lhe cometer disparates, mas vive."

DOSTOIÉVSKI, Fiodor. Noites Brancas e outras histórias (trecho de "Memórias do Subsolo"). São Paulo: Editora Martin Claret, 2004.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Desabafo

É um desabafo simples e inocente. Não chega nem a ser isso.

Mas ...como eu gostaria. Eu queria muito que houvessem reuniões mensais, quinzenais ou semanais, juntando um pessoal afim de ouvir uma música de boa qualidade, beber umas cervejas pra quem bebe, fumar uns cigarros pra quem fuma, e ficar apreciando canções, uma a uma. Que cada um fizesse comentários, com o cérebro ou com a alma, sobre a melodia, o arranjo, a harmonia, o timbre, a gravação mal feita, qualquer coisa. E que ficássemos ali, bebendo aquele doce mel das notas e acordes, cantos e ritmos daqueles sons de quaisquer que fossem as caixas. Ouvindo e compartilhando impressões, se emocionando individual ou coletivamente. Despretensiosamente. Sem objetivo nenhum que não a pureza, que não a amizade, que não o amor, que não a música, que não o prazer. Ah, como eu queria. Onde estão vocês ?

quarta-feira, 9 de junho de 2010

O sorriso do bêbado

E então o bêbado deitado no chão sujo, no meio da praça central daquela pequena cidade no coração ou no intestino do Brasil, esboça um sorriso desdentado. E logo depois dá uma gargalhada. Aquele olhar brilhante, embriagado, sem direção, completa o sorriso sem sentido, e com todo o sentido do mundo.
Uma expressão cheia de saudades, e carregada de pesada ironia. Como se aquele bêbado imundo jogado no chão fosse a alegoria de toda a condição humana.
Deve ter vivido o diabo, aquele senhor. Deve ter visto o que quis e o que não quis. Deve ter vivido enclausurado num dia, e com toda a liberdade de um pássaro num outro momento.
HAHAHA sua risada ri na cara de quem quer ver. Ri das pessoas que o ignoram como se ele fosse mais uma pedra daquela rua de paralelepípedo. Ri um riso louco e inocente, grito duma mente que já se esqueceu, mas de uma alma que não esquece as marcas que leva, e dum corpo quase sem luz, cujos últimos impulsos de vida provocam espasmos, vômitos e passos trôpegos pela calçada até o banco mais próximo, dormitório.
O bêbado é uma afronta aos hospitais, farmácias, metrôs e outros lugares com aquela luz branca, asséptica, que revela cada detalhe da limpeza dos que o frenquentam, mas também das sujeiras muitas. É uma afronta à beleza, uma afronta à lucidez, à razão.
Seus gestos errantes e errados estendem os membros na direção do que resta do humano bicho dentro do homem, a bunda da senhora que passa, a garrafa de água do atleta, a marmita do trabalhador e o carro-abrigo do jovem de cabelo lavado que liga o motor.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Sessão das 10

Dá-se a descarga. Ou melhor, a água de alimento reciclado vai cano abaixo. E termina nossa história. Ou melhor, começa. Quero ir, que o aeroporto espera. E no apartamento caixa de sapato, dou risada do futuro trapo, e do presente esquálido.
Os sorrisos fabricados desfilam em minha janela, de doutores que vão almoçar e de hippies que ficam em pé nos portões.
Nessa cidade de São Jorge, ou de São Sebastião, delego um futuro que já atravesso, mas você é tão legal. E naturalmente me prendo aqui, é do apego humano. Se ligar na nega e no bolero, no coro que canta junto a você. E quem sabe até, numa sessão das dez, você me oferece uma pipoca e eu caso contigo.
Quero ir à sua essência, me embrenhar e me tornar um só contigo. Mesmo você sendo predadora, te caçarei como presa. Vou mergulhar, e mesmo que seu âmago seja tão azedo a ponto de queimar minha língua, preciso ir. Deixo na superfície uma bóia amarrada ao pé. Porque é mesmo pelo pé que teria que ser puxado, pra ter que levantar depois o corpo todo de novo.
Eu queria me mandar. Mas não necessariamente isso emplica em te abandonar, e sair daqui, talvez seja mesmo me mandar no sentido de mandar em mim.
Você me deixou. Me abandonou em teu próprio seio, desorientado pra te achar, já dentro de ti.
Mesmo assim, vou botar pra ferver. Ou mudo de lugar, ou mudo o lugar. Quero poder estar em alguma terra em que possa pensar que ali, todo mundo está feliz. E não preciso fazer isso saindo daqui, faço aqui mesmo.
Eu vou sentir saudade desse assanhamento todo da cidade grande, mas se precisar construo uma cidade maior ainda, mesmo que na minha cabeça. E aí, boto pra guerra, e acho graça.
Pra ficar muito tranquilo, sem precisar dizer adeus. Ter amor e liberdade, pra ter toda essa cidade dentro do meu coração.

sábado, 27 de março de 2010

Poema em linha reta (Álvaro de Campos)

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó principes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

(de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa)

sexta-feira, 26 de março de 2010

Sabedoria Zen - A grande estrada


"Para alcançares a grande estrada, não haverá portões. Haverá, sim, mais de mil caminhos diversos a escolher. Uma vez atravessada a barreira sem portões, conseguirás andar livremente pelos caminhos entre o céu e a terra."

Wu-Men Hui-K´ai

quinta-feira, 4 de março de 2010

O último extermínio do gado.

... dos Registros Históricos do futuro de lugar nenhum.


Eis que o recém eleito governo mundial de posse de total controle do globo
Impõe, como medida emergencial
a abolição do consumo de animais
para alimentação do ser humano


Com a medida, espalhou-se o pranto
da maioria dos terráqueos
Pois do sabor de que gostavam tanto
não provariam mais sequer um naco

Porém, naquela hora decisiva
e numa lucidez um tanto atrasada
Não se pensou em outra medida
tão urgente a ser aplicada


Haveria, então, um último banquete
onde nos fartaríamos de toda a carne
Um derradeiro regozijo e deleite
Das entranhas provindas do abate


O sangue dos bichos fartaria
a sede da terra desnutrida
A boca salivante mastigaria
a morte do que já foi vida


O homem, então, em seus altares da morte
se fartaria em gozo, inocente pecado
Após o sacrifício, o último grande corte
não mais o animal seria gado

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Trecho de carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro

"(...) Falta responder à sua pergunta quanto ao ocultismo (escreveu o poeta). Pergunta-me se creio no ocultismo. Feita assim, a pergunta não é bem clara; compreendo porém a intenção e a ela respondo. Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos, em experiências de diversos graus de espiritualidade, subtilizando até se chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente criou este mundo. Pode ser que haja outros Entes, igualmente Supremos, que hajam criado outros universos, e que esses universos coexistam com o nosso, interpenetradamente ou não. Por estas razões, e ainda outras, a Ordem Extrema do Ocultismo, ou seja, a Maçonaria, evita (excepto a Maçonaria anglo-saxónica) a expressão «Deus», dadas as suas implicações teológicas e populares, e prefere dizer «Grande Arquitecto do Universo», expressão que deixa em branco o problema de se Ele é criador, ou simples Governador do mundo. Dadas estas escalas de seres, não creio na comunicação directa com Deus, mas, segundo a nossa afinação espiritual, poderemos ir comunicando com seres cada vez mais altos. Há três caminhos para o oculto: o caminho mágico (incluindo práticas como as do espiritismo, intelectualmente ao nível da bruxaria, que é magia também), caminho místico, que não tem propriamente perigos, mas é incerto e lento; e o que se chama o caminho alquímico, o mais difícil e o mais perfeito de todos, porque envolve uma transmutação da própria personalidade que a prepara, sem grandes riscos, antes com defesas que os outros caminhos não têm. Quanto a «iniciação» ou não, posso dizer-lhe só isto, que não sei se responde à sua pergunta: não pertenço a Ordem Iniciática nenhuma.(...)"

PESSOA, Fernando . Escritos Íntimos, Cartas e Páginas Autobiográficas.(Introdução, organização e notas de Antoónio Quadros.) Lisboa: Publ. Europa-América, 1986. - 199.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Escondido no canto

Timbres em cor de prata, silvo supersônico de metal em dissolução. Flutuantes degraus, teclas em que os pés da cabeça pulam e batem. Deixando-se levar, em lava que vai lavando e derretendo as intensas vibrações de suas cordas soltas na ar. Chama esse som um mistério antigo e escondido, que vai se revelando lentamente, uma melodia de cada vez. Harmônicos cenários de fluidos coloridos que devaneiam e se dissolvem. Mostra isso uma forma de beleza e se revela uma luz em multi-formas. Canta-me um e todos os segredos, não de outra coisa, mas os ocultos cantos de si mesmo.

[ouvindo o álbum "Chick Corea & Return to Forever (1972)"]

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

De volta à

Atravesse a barreira
e traga algo do outro lado
Colha as maravilhas que achar
e espalhe pelo lado de cá

Em cada parede vazia
espalhe tinta de esplendor
Cante em suave melodia
os encantos da terra de lá

Gire um brilho, um corpo
extasiado de descoberta
Sonhe em real fantasia
um lírio de flor, um colar

Suave fio se enreda em cores
flutua entre odores, sentidos
Se encontram suas partes no ar
e pairam em suave giro

Não se esqueça de nós
que esperamos em terra
Nos traga do mar onírico
esperança a se espalhar depressa

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Poeminha

Como pode
tão brusco traço
Retratar a natureza
Tão singela e sublime ?

Como pode
tão duro aço
perpetuar a beleza
ao invés de ser o vime ?

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Esquizovagões

Começa a corrida dos dedos no contrabaixo, apontando a velocidade. Som de atmosférico ritmo levando automóveis espaciais para longe daqui. Mais perto dali.
Ali é de onde saiu um carro-rato roendo a consciência pra bem perto daqui. E suas passadas tem barulho teclado no chão, timbre de frenética leveza e torpor.
Minha auto-carro-consciência saiu pra bater em um poste, e daqui uns séculos eu bato de volta em sua porta.
Movimento de fora pra dentro e pra fora de novo, estímulo-resposta imediato e simultâneo. De lá de lado eu ainda vejo minha anacronia acenando pra mim, pedindo que eu traga alguns de volta de lá.
Num trem de vagas almas passageiras, que compraram a passagem e mal começaram a pagar, o trem-consciência onde entram os que saltam de seus carros inundados.

Praonde

De degrau em degrau
Vem surgindo o Sol
Despontando e ponteando
uma sombra

como não vale a pena
sair por aí
gastando horas à toa
horas a fio

mesmo Sol, mesma Lua
talvez um novo endereço
de outra criatura humana

rápido, num piscar de luzes
os olhos se transformam em movimento
sombra, vultos e cimento

mas ainda vem o Sol
e logo antes vem a Lua.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Porta fechada

Uma porta
Maciça
Em minha frente
Imponente

Do outro lado
Seres fantásticos
Uma sereia, um dragão, um fauno
E outras criaturas mágicas

Quero falar com eles
Quero estar com eles

Ouço um som
De miraculosa cítara
E mágicas harpas
Que lançam lindas notas ao ar

Quero dançar com eles
Quero cantar com eles

Mas a porta
Impassível
Que eu não consigo abrir
Continua, imponente
Em minha frente

Abram , abram !

sábado, 2 de janeiro de 2010

A rede

O presente momento é de inquietude. Porque a vida tem isso, de que se a gente não larga a mão de alguma coisa, a gente acha que essa coisa prende a gente de viver um monte de outras coisas. Mas se a gente deixa passar essa coisa, às vezes se arrepende de ter perdido, e fica pensando que talvez fosse justamente aquilo que ia fazer a gente feliz, ou talvez não. E é justamente esse estado de suspensão, de por resolver, de ser ou não ser, que faz com que venha aquele sofrimento de deixar a gente desorientado mesmo, sem saber pra onde ir. É talvez uma dor pior do que aquelas dores que a gente sofre muito, mas pro bem ou pro mal, dá pra saber que vai durar um tempo, mas vai acabar.
E nesses momentos se pensa se vale mesmo a pena sofrer por um apego, porque a vida humana tem muito disso, da gente se apegar, perder e sofrer, e depois repetir o ciclo até chegar ao fim dos nossos dias com a alma cheia de cicatrizes. Aí o que tentamos fazer é aprender a não se apegar, ou se apegar mais moderadamente, ter essa sabedoria. Mas chega logo uma coisa nova que arrebata de repente nosso coração, e a gente vê que tudo isso foge muito do nosso controle e, por vezes, cai de novo na rede das paixões.

(E se a gente acha um apego que nos satisfaz pro resto da vida ?)