terça-feira, 4 de junho de 2013

Sobre ser o que se bem entende

A repressão à subjetividade inerente a cada um, à particularidade da expressão, do comportamento, das palavras e gestos de casa pessoa, não precisa passar necessariamente por instituições oficiais, por constituições e outras formas legislativas, por grandes consensos éticos e morais acordados pelo senso comum. Não. Ela pode estar naquela roda de amigos com os quais você vai ao bar, nas risadas emitidas quando você faz uma pergunta em um local público que desvia daquilo que é esperado, daquilo que é tido como normal. Pode estar num meio, inclusive, que se diz libertário, que prega a valorização e o respeito da opinião de cada um. Acho muito aceitável, necessário até, que não sejam levadas em conta as colocações e afirmativas que releguem outras pessoas a situações de exclusão e marginalização. Contudo, quando aquele ou aquela que se expressa, se coloca, o faz de maneira que somente afete a si mesma, considero que não deve haver, nesse caso, escárnio ou retaliação, de qualquer natureza. Ainda assim, o que se vê é que mesmo aqueles que respeitam a opção de cada um de fazerem o que bem entenderem com seus corpos, quando se colocam de maneira a não agradar os membros do nicho no qual estão inseridos, sofrem algum tipo de opressão. Ocorre a tentativa de se normatizar o comportamento daquele indivíduo, de maneira a que se ajuste ao "bando"; isso se passa mesmo nos grupos sociais ditos marginalizados, e que, à sua maneira, marginalizam também. Assim, a máquina capitalística de produção de subjetividade (nos dizeres de Félix Guattari) não precisa de soldados para vigiar, a todo o tempo, o comportamento desviante: as próprias pessoas comuns participam desse processo. Isso ocorre toda vez que uma determinada maneira de se vestir, de gesticular, de falar, determinados comportamentos alimentícios, sexuais, inclinações artísticas, entre outras coisas, são censuradas em um certo nível, inclusive por seus pares, mesmo sendo os próprios tidos como marginalizados em uma escala mais ampla. O músico Ian Mackaye coloca frequentemente, em entrevistas e palestras, quanto preconceito sofria por não beber ou usar drogas na cena punk da qual participava, onde fazer essas coisas era o comportamento padrão. É uma clara tendência, ao longo da história da humanidade, a exclusão e marginalização do diferente, do desviante, do autêntico, que também é o não-palatável, o não-aceitável, e cuja soma dessas características pode levar, finalmente, ao invisibilizado. E existem seres como estes mesmo dentro de grupos que possuem tais características. Seria uma contracultura na contracultura. O que está se defendendo aqui não é, de maneira alguma, uma rejeição à qualquer tipo de crítica, brincadeira saudável, ou até mesmo conselho, que possa levar à melhoria de algum comportamento possivelmente destrutivo da pessoa. O que se pretende é que abramos nossos olhos para o perigo de reproduzirmos os mesmos comportamentos repressores daqueles que estão "acima de nós", que o fazem sistematicamente. É um grito à liberdade de escolha, de ser o que você bem entender - mas sempre lembrando de que a pessoa ao seu lado também quer o mesmo, e cabe a cada um encontrar o limite entre a liberdade do outro e a sua.  

sábado, 1 de junho de 2013

Mais uma noite

A música está bem alta, meu cérebro nem sente, meu corpo sim. Meus cotovelos, eles estão encostados no balcão. Sempre estão. Se acostumaram com o duro e frio carinho da beira do bar. Por vezes, um deles fica sozinho, enquanto o outro vai dar uma olhada na fauna do recinto. Uma banda. Não fui com a cara do baixista, mas ele toca bem. Dou uma pequena risada interior por achar aquilo ali um tanto patético. Duas ou três pessoas simplesmente ficam assistindo ao show inteiro, cantando, numa espécie de submissão. Peço outra cerveja, veio bem gelada, minha boca se enche de saliva. Vejo uma mulher ruiva, pele muito branca, tatuagens pelo braço, parece bem quente, e minha boca se enche de saliva. Fico imaginando o que poderia estar fazendo com ela, num lugar bem longe daquela merda toda. Me recolho novamente. Bebida no copo, copo na boca, gota escorre pelo canto, limpo com o reverso da mão. O som, pesado e caótico, começa a me fazer bem, acho. De certa maneira, me identifico, me sinto familiarizado em meio àquele universo ruidoso. O ambiente se conforma ao meu espírito confuso. Preciso ir ao banheiro, vou, mijo. Lavo as mãos e jogo água na cara. Um pouco de náusea. Não comi direito hoje, venho bebendo há dias, o som alto, o escuro, as vozes que não param de falar e falar. Preciso sair daqui, mas antes tentarei vomitar. Tento, não consigo, e infelizmente não suporto a ideia de colocar um dedo na garganta. Saio tonto, e aviso um amigo que irei embora, pago o que devo, e vou apressadamente porta afora. Ando até o ponto de ônibus, ele demora mais do que eu gostaria, e vou pedindo carona - ninguém para - e cantarolando no meio tempo. Finalmente chega. Converso com o motorista, é simpático. Ele para em um ponto para que um cara que está no transporte com a gente compre algumas coisas, e acende um cigarro. Desço do ônibus, e peço um trago, ele me dá alguns. Voltamos, andamos mais um pouco, salto no ponto errado. Ando um pouco mais do que poderia, do que deveria, por ruas desertas na madrugada. Elas ficam tão bonitas na calada da noite, têm uma certa maturidade, uma misteriosa dignidade. Chego em casa, não me lembro bem o que faço. O telefone toca, e eu acordo: já é dia.