segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Admirável homem novo

"Vemos, pois, que a tecnologia moderna tem conduzido à concentração do poder econômico e político, e ao desenvolvimento de uma sociedade controlada (implacavelmente nos estados totalitários, polida e imperceptivelmente nas democracias) pelo Alto Negócio e pelo Alto Governo. Mas as sociedades são compostas de indivíduos e só são boas na medida em que ajudam os indivíduos a realizarem suas potencialidades e conduzem a uma vida feliz e criadora. Como é que os indivíduos foram afetados pelos progressos técnicos dos anos recentes? Eis a resposta dada a esta interrogação por um filósofo-psiquiatra, Dr. Eric Fromm: 'A nossa sociedade ocidental contemporânea, a despeito do seu progresso material, intelectual e político, conduz cada vez menos à saúde mental, e tende a sabotar a segurança interior, a felicidade, a razão e a capacidade de amor no indivíduo; tende a transformá-lo num autômato que paga o seu fracasso humano com as doenças mentais cada vez mais frequentes e desespero oculto sob um frenesi pelo trabalho e pelo chamado prazer.'
As nossas 'doenças mentais cada vez mais frequentes' podem achar expressão em sintomas neuróticos. Estes sintomas são evidentes e extremamente perigosos. Mas, 'guardemo-nos', diz o Dr. Fromm, 'de definir a higiene mental como prevenção de sintomas. Os sintomas, como tais, não são nossos inimigos, mas nossos amigos; onde há sintomas há conflito, e conflito indica sempre que as forças da vida, que porfiam pela harmonização e pela felicidade, ainda lutam. As vítimas de doença mental realmente perdidas encontram-se entre aqueles que parecem mais normais. 'Muitos daqueles que são normais, são-no porque se encontram tão bem adaptados ao nosso modo de existência, porque as suas vozes humanas foram reduzidas ao silêncio tão cedo em suas vidas, que nem lutam, ou sofrem, ou exibem sintomas como o neurótico.' São normais, não no que pode chamar-se o sentido absoluto da palavra; são normais somente em relação a uma sociedade profundamente anormal. O seu perfeito ajustamento a esta sociedade anormal dá a medida da sua doença mental. Estes milhões de pessoas anormalmente normais que vivem sem ruído numa sociedade a que, se fossem seres plenamente humanos, não deveriam estar adaptados, ainda acariciam 'a ilusão da individualidade', mas de fato foram em larga medida des-individualizados. A sua conformidade está a evoluir para algo como a uniformidade. Mas, 'uniformidade e liberdade são incompatíveis. A uniformidade e a saúde mental são igualmente incompatíveis... O homem não está feito para ser um autômato, e se se transforma em autômato, a base da sua saúde mental está destruída'"

HUXLEY, Aldous. Regresso ao Admirável Mundo Novo. Lisboa: Livros do Brasil. (ano não informado). p. 50-52

domingo, 17 de outubro de 2010

Gente que viaja

Alguns passam apressados, para que não percam o horário de partida. Outros, mais lentos, têm tempo, ou já o perderam. Quando em vez, alguém parece estar sem destino. Quem são ?
Famílias que viajam de mudança, procurando novos ares e esperanças. Preocupados viajantes que vão à negócios, fechar um acordo, ou desfazer. Pessoas com saudades ou que, apenas por necessidade, vão visitar parentes, rever amigos, conferir como estão os lugares onde cresceram, e dos quais a vida os afastou.
Atrasados, tristes, esperançosos, automáticos, triunfantes, saudosos, sérios, despreocupados.
Até quem sabe ... por um olhar e pela bagagem, me pareceu que uma alma solta e vaga escolheu um destino qualquer, por querer uma vida completamente nova, esquecendo de si mesmo, ou por participar do grupo das almas aventureiras, que se partilham em mil, são todos nós e ninguém, e carregam o peso de todas as solidões. As solidões dos viajantes, de todos, que rumam ao lugar incerto.
Algumas passagens custam pouco. Outras, tiveram como preço as últimas economias do viajante; nesses passes estão depositadas esperanças de renovação, algo que vale como a última chance, derradeira tentativa da pessoa que tem o brilho da fé em seus olhos. São muito mais que passagens, são chances de uma nova vida.
E das mais variadas formas, múltiplos comportamentos, os objetivos, os sonhadores, os saudosos e os sem destino: todos trocam olhares e seguem seus passos, em um mesmo lugar.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Passado por um rio

Era natural que isso acontecesse. Eu mudei, todos mudaram.
E foi preciso romper. Alcançar outro eu, uma nova identidade, mais evoluída.
Quando olho para aquilo tudo, vejo senão o passado quase congelado.
E quando entro em contato, me sinto desconfortável ... como se entrasse num lugar onde a música não estava boa e, apesar de eu até poder me divertir um pouco, provavelmente o resultado final não seria bom, eu não me sentiria bem ali.
Como se eu tivesse pausado a imagem de um espelho, e anos depois olhasse para este mesmo espelho e não visse mais meu reflexo.
Agora, reconstruir. Galgar novas conquistas, ressignificar as velhas.
O ideal seria romper com certas coisas para além do poder da memória. Seria submergir meu ego, e emergir novo em folha.
Abandonar as reminiscências do passado, mas elas insistem em voltar. Meros devaneios tolos, a me torturar.
Ora, o ideal é quase sempre impossível. Sempre sobra algum peso do passado.
Mas já não há nada como era antes.

Um rio, da nascente à foz. Suas águas brotam do subterrâneo, rompem a escuridão do solo e impõem-se perante o ar livre. Ora suavemente, e às vezes em fluxo frenético, segue seu caminho por entre os relevos que, até certo ponto, o determinam. Passa pelas mais diferentes planícies, entre altas montanhas, cercado de densas florestas ou em campos abertos. E, finalmente, desemboca no mar. Ao longo de todo o seu curso, o rio sofreu inúmeras mudanças. Muito foi perdido e muito foi acrescentado. Sendo ele, apesar das diferenças em suas variadas alturas, o mesmo, suas partes se comunicam entre si. Melhor dizendo: as partes próximas à nascente se comunicam com as próximas à foz. Mandam seus fluidos para lá. Isso, o rio não pode evitar.