segunda-feira, 26 de julho de 2010

Paisagem

Dos campos verdes quase escuros que se estendem ao olhar, os canais de água brilham em laranja fluorescente, em espirais que desafiam a gravidade.
Gaivotas pretas em linguagem antiga se comunicam e gorjeiam em rápido passeio pela superfície descampada.
Frenéticas mutações de múltiplas cores se agitam formando vórtices de sucção dos tempos que o observam.
Em suaves e depois intensas ondas, tapetes vermelhos desfibrilam o céu roxo já com muita pressa, antes que as nuvens pulsações cessem seu jogar de raios na superfície despovoada.
O eco de fantasmas murmurantes já se ouve de dentro das cavernas elevadas por sobre a terra, verdadeiros labirintos de escuridão infinita.
E todos os seres que ali voam, em direção das florestas do absurdo , se desfazem em intensos feixes de luz, derretendo metais que se transfiguram e escoam por vastos canais, em múltiplas direções.

[ouvindo um álbum do Tangerine Dream, "Phaedra", de 1974]

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Que sabe a Razão ?

"(...) Contudo, perdoai-me por ter-me posto assim a filosofar. Não o esqueçais: tenho quarenta anos de subsolo. Permiti me soltar as rédeas à minha fantasia. Vede, senhores, a razão é uma coisa excelente; isso é incontestável; mas a razão é a razão, e não satisfaz senão a faculdade de raciocínio do homem, enquanto o desejo é a expressão da totalidade da vida, isto é, da vida humana inteira, inclusive a razão e seus escrúpulos; e, se bem que nossa vida, tal como se exprime assim, se revista frequentemente de um aspecto muito velhaco, nem por isso é menos vida, e não a extração da raiz quadrada.
Assim comigo, por exemplo: quero viver, naturalmente, a fim de satisfazer minha faculdade de existência em sua totalidade e não para satisfazer unicamente minha faculdade de raciocínio, que não representa, em suma, senão a vigésima parte das forças que estão em mim. Que sabe a razão? A razão não sabe senão o que aprendeu (ela não saberá nunca outra coisa, provavelmente; e, embora isso não seja uma consolação, não o devemos dissimular), ao passo que a natureza humana age com todo o seu peso, por assim dizer, com tudo o que ela contém em si, consciente e inconscientemente; acontece-lhe cometer disparates, mas vive."

DOSTOIÉVSKI, Fiodor. Noites Brancas e outras histórias (trecho de "Memórias do Subsolo"). São Paulo: Editora Martin Claret, 2004.