terça-feira, 21 de maio de 2013

Sobre ser alguém no Brasil

"Essa conjunção de formas supermodernas com arcaísmos incríveis está em toda parte, nas grandes cidades brasileiras. Mas ela não está só fora, está sobretudo dentro da cabeça. O comportamento e a linguagem revelam isso muito bem. Penso, por exemplo, num enunciado tão corrente na vida brasileira, que é o famoso: 'você sabe com quem está falando?' A análise que o Roberto da Matta faz dessa frase mostra o quanto a noção de indivíduo é pejorativa no Brasil. Pois o 'você sabe com quem está falando?' revela o inverso do que diz a frase americana 'quem você pensa que é?' ou o enunciado francês 'por quem você se toma?' Nos dois últimos casos, a pergunta indica que a regra fundamental é a igualdade, que todos têm os mesmos direitos, e que, portanto, aquele que pensa que é superior deve abdicar de sua pretensão. No caso de 'você sabe com quem está falando?' dá-se o contrário: a frase coloca quem a usa numa posição superior, instaurando imediatamente a hierarquia e a desigualdade social. É que, no Brasil, a pessoa parece ser mais importante que o indivíduo, pois ser indivíduo é um estigma, é ser anônimo, é ser um 'zé ninguém'.
A frase 'você sabe com quem está falando?' permite precisamente a passagem do indivíduo à pessoa. Isto é, do terreno da impessoalidade das relações capitalistas para o sistema hierárquico e autoritário das relações pessoais, para o território do favor, da consideração, do respeito, do prestígio, com seus figurões, seus medalhões, seus padrinhos, seus pistolões, etc. Nesse sentido, o que torna alguém pessoa, o que lhe dá identidade social não é apenas o critério econômico, mas também, e sobretudo, as relações pessoais. São pessoas aqueles que contam; como revela o dito: 'quem tem sapato se conhece'. E entre quem se conhece, não se pergunta 'você sabe com quem está falando?', pois todo mundo já conhece o seu lugar. 
Assim, no Brasil convivem e conjugam-se num mesmo drama dois mundos: o mundo das pessoas, onde todos são 'gente', de uma ou de outra maneira acima da lei, mundo das relações sociais personalizadas que possui um código altamente elaborado. E quem desconhece esse código, corre o risco de ser inferiorizado, colocado em seu 'devido lugar' ao receber pela frente um 'você sabe com quem está falando?' Por outro lado, há o mundo de indivíduos, impessoal, regido pela lei igualitária e universalizante. Como afirma Roberto da Matta: 'as leis só se aplicam aos indivíduos e nunca às pessoas'."

Laymert Garcia dos Santos, no livro "Cartografias do Desejo"