domingo, 30 de dezembro de 2012

A grama

Engraçado como as impressões que me causa essa grama toda alta são tão diferentes, e até contraditórias. O fato dela estar como está remete a uma sensação de abandono, de um não se preocupar, de um desleixo. Essas coisas levam a pensar que o responsável pelo manejo do jardim também está possivelmente abandonado, desleixado, sem ninguém para se preocupar com ele. Mas vai alta, a grama. De um verde intenso, que murcha ligeiramente com o sol ardente, mas se levanta, soberana, à chuva que cai nesses dias. É uma pujança de vida, aparecem tantas espécies de insetos e pequenas plantas, que despreocupadamente crescem, indicando a renovação. Então é um descuido, mas é um viver. Renovadas sementes em meio a essa velha vida. Então o jardineiro se levanta, vai à porta, abre, e olha toda essa relva. Em toda sua tristeza, vê alguns bichos rodando em volta de uma flora que não estava lá antes. Em todo o peso desses tempos, algo surpreendente surge, não da grama, mas do homem: um sorriso. 

sábado, 8 de dezembro de 2012

Delírios Tropicais

Delírios tropicais
lírios astrais
doces sonhos de fim de tarde

O Sol se põe sem fazer alarde

Desenham as nuvens suas rubricas
assinaturas únicas

As túnicas e véus
caem em tentação

E o lírico pesar 
da noite que entra
arrebata
e, onírico, arrebenta

A Lua traz seu paladar

Roda o vento
e os eixos das bicicletas
ondas assimétricas
desenham esse mar
descortinando a paz 

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

No ônibus

Seguia eu, não tão confortavelmente sentado em um leito de ônibus. Já era noite, e o veículo ia por uma estrada molhada, com nuvens carregadas a vagar no céu. Eu, para espantar um pouco do tédio do que seria uma longa viagem, tentava sintonizar alguma rádio no meu aparelho celular, missão que se revelou um tanto quanto difícil, pela locomoção constante e consequente perda do sinal. Enfim, uma sono
ridade me agrada: era uma moda de viola, que tocava em alguma das estações. Fiquei a escutar, sentindo no fundo da alma as sofridas mágoas dos caipiras cantadores, e suas desilusões amorosas. De repente, de meus fones começam a sair efeitos sonoros que sugerem suspense, e uma voz começa a me perguntar se eu estava com problemas, se eu achava que nada tinha solução - e eu assentindo. Então o locutor, com sua fala grave, sugere que um certo Padre Miguel Arcanjo resolverá minhas mazelas, com seus grandes poderes, sendo ele descrito como um exorcista, vidente e carismático. Não pensem que mudei de estação: aquilo atiçava demais minha curiosidade. Após mais algumas promessas milagrosas, uma ouvinte começa a relatar seus problemas: ela não consegue amar ninguém, só se envolve com homens por sexo, e quando copula uma vez, não quer mais ver o rapaz em sua frente. O padre, então, com suas dádivas visionárias, diz que vai curá-la desse mal, sugerindo que, em cima da cabeça da ouvinte, se encontram sete meninas de Exú, que estão a forçá-la aos caminhos do pecado. O poderoso ser promete, então, que através de rezas e de um possível encontro em pessoa, irá resolver o mal que aflige a pobre moça que não ama. A rádio, então, volta a programação normal. Ouço mais uma ou duas músicas penosas à viola, e logo meus fones começam a chiar. Seria uma longa viagem.

domingo, 5 de agosto de 2012

Concreta

De onde veio essa ... impressão?
Dos prédios e tédios?
Que importa, se a esta hora
sua porta bate em minha cara?

Encontro as esquinas da cidade
Indiferentes à minha presença
Suas fachadas me virando o rosto
Seus edifícios altos demais
Para que eu possa alcançá-los

Alguns passos, e continuo aqui
Estou no Mundo
E mesmo com a luz do dia
Não vejo as paredes pichadas
Com suas declarações de amor

Algumas ruas depois
Repleto de abstrações
Atravesso o concreto
Para além de mim