quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Trecho de carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro

"(...) Falta responder à sua pergunta quanto ao ocultismo (escreveu o poeta). Pergunta-me se creio no ocultismo. Feita assim, a pergunta não é bem clara; compreendo porém a intenção e a ela respondo. Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos, em experiências de diversos graus de espiritualidade, subtilizando até se chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente criou este mundo. Pode ser que haja outros Entes, igualmente Supremos, que hajam criado outros universos, e que esses universos coexistam com o nosso, interpenetradamente ou não. Por estas razões, e ainda outras, a Ordem Extrema do Ocultismo, ou seja, a Maçonaria, evita (excepto a Maçonaria anglo-saxónica) a expressão «Deus», dadas as suas implicações teológicas e populares, e prefere dizer «Grande Arquitecto do Universo», expressão que deixa em branco o problema de se Ele é criador, ou simples Governador do mundo. Dadas estas escalas de seres, não creio na comunicação directa com Deus, mas, segundo a nossa afinação espiritual, poderemos ir comunicando com seres cada vez mais altos. Há três caminhos para o oculto: o caminho mágico (incluindo práticas como as do espiritismo, intelectualmente ao nível da bruxaria, que é magia também), caminho místico, que não tem propriamente perigos, mas é incerto e lento; e o que se chama o caminho alquímico, o mais difícil e o mais perfeito de todos, porque envolve uma transmutação da própria personalidade que a prepara, sem grandes riscos, antes com defesas que os outros caminhos não têm. Quanto a «iniciação» ou não, posso dizer-lhe só isto, que não sei se responde à sua pergunta: não pertenço a Ordem Iniciática nenhuma.(...)"

PESSOA, Fernando . Escritos Íntimos, Cartas e Páginas Autobiográficas.(Introdução, organização e notas de Antoónio Quadros.) Lisboa: Publ. Europa-América, 1986. - 199.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Escondido no canto

Timbres em cor de prata, silvo supersônico de metal em dissolução. Flutuantes degraus, teclas em que os pés da cabeça pulam e batem. Deixando-se levar, em lava que vai lavando e derretendo as intensas vibrações de suas cordas soltas na ar. Chama esse som um mistério antigo e escondido, que vai se revelando lentamente, uma melodia de cada vez. Harmônicos cenários de fluidos coloridos que devaneiam e se dissolvem. Mostra isso uma forma de beleza e se revela uma luz em multi-formas. Canta-me um e todos os segredos, não de outra coisa, mas os ocultos cantos de si mesmo.

[ouvindo o álbum "Chick Corea & Return to Forever (1972)"]

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

De volta à

Atravesse a barreira
e traga algo do outro lado
Colha as maravilhas que achar
e espalhe pelo lado de cá

Em cada parede vazia
espalhe tinta de esplendor
Cante em suave melodia
os encantos da terra de lá

Gire um brilho, um corpo
extasiado de descoberta
Sonhe em real fantasia
um lírio de flor, um colar

Suave fio se enreda em cores
flutua entre odores, sentidos
Se encontram suas partes no ar
e pairam em suave giro

Não se esqueça de nós
que esperamos em terra
Nos traga do mar onírico
esperança a se espalhar depressa

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Poeminha

Como pode
tão brusco traço
Retratar a natureza
Tão singela e sublime ?

Como pode
tão duro aço
perpetuar a beleza
ao invés de ser o vime ?

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Esquizovagões

Começa a corrida dos dedos no contrabaixo, apontando a velocidade. Som de atmosférico ritmo levando automóveis espaciais para longe daqui. Mais perto dali.
Ali é de onde saiu um carro-rato roendo a consciência pra bem perto daqui. E suas passadas tem barulho teclado no chão, timbre de frenética leveza e torpor.
Minha auto-carro-consciência saiu pra bater em um poste, e daqui uns séculos eu bato de volta em sua porta.
Movimento de fora pra dentro e pra fora de novo, estímulo-resposta imediato e simultâneo. De lá de lado eu ainda vejo minha anacronia acenando pra mim, pedindo que eu traga alguns de volta de lá.
Num trem de vagas almas passageiras, que compraram a passagem e mal começaram a pagar, o trem-consciência onde entram os que saltam de seus carros inundados.

Praonde

De degrau em degrau
Vem surgindo o Sol
Despontando e ponteando
uma sombra

como não vale a pena
sair por aí
gastando horas à toa
horas a fio

mesmo Sol, mesma Lua
talvez um novo endereço
de outra criatura humana

rápido, num piscar de luzes
os olhos se transformam em movimento
sombra, vultos e cimento

mas ainda vem o Sol
e logo antes vem a Lua.