segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Onironauta

Quando estou no mundo onírico, entrelaçado nas redes maravilhosas de Morfeu, não sei dizer se aquilo é realidade, aquela com a qual a gente está acostumado, ou não. Naquele mundo fantástico, o absurdo acontece, mas aos sentidos me parece que aquilo é tão real quanto qualquer outra coisa. Posso estar voando, organizando planos para derrotar os invasores alienígenas, qualquer coisa ... E tudo aparenta ser tão ou mais verossímil do que quando coloco meus pés descalços sobre o frio chão de madeira, e caminho em direção à água que lavará meu rosto.
E quando estou aqui, entre as paredes do cotidiano do mundo dito real, que talvez não seja mais real do que qualquer outra coisa fora da realidade, não posso me sentir como me sinto nos sonhos. As possibilidades se limitam, ficam quadradas, dentro de uma caixa. Em tudo há censura, há gravidade, há limitação corpórea. Sinto muitas vezes que isso aqui nem é tão real assim. Minha verdade particular esbarra nas outras e, do choque, sinto que estou acordado. E a maneira que encontro de me aproximar dos sonhos, mas tendo essa realidade como base, só é encontrada no torpor da embriaguez dos sentidos, seja qual for a causa desta. Um dia talvez eu acorde, tal qual Gregor Samsa na "Metamorfose", transformado em um gigante inseto. E, mesmo que seja a realidade dita real, ainda assim eu acharei que esse absurdo todo só pode ser um sonho.

Acordei um dia e senti o silêncio total. Senão de minha parte, não havia qualquer movimento ou ruido. Saí nas ruas e não encontrei viva alma. Nem animais, nem humanos. Depois de algum tempo, vi que estava completamente sozinho na Terra. Pude constatar isso ao sobrevoar cada metro quadrado do planeta, num bater de braços tão rápido quanto o som. Ao chegar no Japão, me entediei e resolvi voltar para casa. Chegando lá, preparei um chá de patas de galinha e deixei esquentar na geladeira. Joguei o chá sobre minha cabeça, e fui dormir. Sonhei então que eu, sentado confortavelmente em uma cadeira, escrevia um texto sobre os sonhos.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Antimonotonia

"Muito se teria de dizer sobre esse contentamento e essa ausência de dor, sobre esses dias suportáveis e submissos, nos quais nem o sofrimento nem o prazer se manifestam, em que tudo apenas murmura e parece andar na ponta dos pés. Mas o pior de tudo é que tal contentamento é exatamente o que não posso suportar. Após um curto instante parece-me odioso e repugnante. Então, desesperado, tenho de escapar a outras regiões, se possível a caminho do prazer, se não, a caminho da dor. Quando não encontro nem um nem outro e respiro a morna mediocridade dos dias chamados bons, sinto-me tão dolorido e miserável em minha alma infantil, que atiro a enferrujada lira do agradecimento à cara satisfeita do sonolento deus, preferindo sentir em mim uma verdadeira dor infernal do que essa saudável temperatura de um quarto aquecido. Arde então em mim um selvagem anseio de sensações fortes, um ardor pela vida desregrada, baixa, normal e estéril, bem como um desejo louco de destruir algo, seja um armazém ou uma catedral, ou a mim mesmo, de cometer loucuras temerárias, de arrancar a cabeleira de alguns ídolos venerandos, de entregar a um casal de estudantes rebeldes os ansiados bilhetes de passagem para Hamburgo, de violar uma jovem ou de torcer o pescoço a algum defensor da ordem e da lei. Pois o que eu odiava mais profundamente e maldizia mais, era aquela satisfação, aquela saúde, aquela comodidade, esse otimismo bem cuidado dos cidadãos, essa educação adiposa e saudável do medíocre, do normal, do acomodado."

HESSE, Herman. O lobo da estepe. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.

domingo, 19 de setembro de 2010

Das penas e papéis

No fim da noite, acabam por se tornar irrelevantes. Cessam todas as formas, devaneios ortográficos de falso sentido. Sem sentido.
No começo do dia, calam e observam. Saem sem dizer, mesmo não saindo. Em seu assobio, soam maiores que símbolos. E cantam o ar.
E antes de serem si mesmas, elas o são. E ... talvez nunca, nunca foram.
Tanto fazem e ... tanto faz.
Voam aos ventos suas cinzas de idéias vivas. E onduladas, nem sempre suaves, melodias.
No fim não existem, e todas essas coisas são mais puras.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Metáfora da escada

Imagine uma escada. Do jeito que penso, ela seria uma escada de degraus da cor da própria madeira de que seriam feitos.
Acima, no próximo andar, tudo que se vê é escuridão. Dos lados, também.
Tão somente a escada, em seus tons de sépia e escuridão envolvente.
Os degraus não ficam firmes, eles se movem de um lado para o outro, sem padrões, simplesmente vão se movendo, ora mais devagar, ora com mais vigor.
Daí segue que, para subir essa escada, e alcançar o mistério do negrume que há no piso acima, tem que se tomar um cuidado imenso. E não pense que você tem a opção de não subir.
É preciso que se suba. É preciso, e você sabe disso, chegar lá em cima e desvendar o mistério que há naquele lugar, pois toda a escuridão é um imenso mistério.
Do piso em que você se encontra, há apenas uma pequena parte de chão para que você coloque os pés e se deite para descansar, eventualmente. Ao redor, todo o precipício.
Então não é possível que você consiga se divertir e se satisfazer com as escassas possibilidades que esse minúsculo pedaço de chão tem a oferecer.
Você precisa subir.
Mas lembre-se: os degraus da escada se movem de um lado para o outro, em movimentos surpreendentes.
Pois, é preciso tomar muito cuidado. E saiba que o primeiro degrau vai ser o mais difícil de subir.
A sabedoria que é necessária para galgar o próximo passo em direção ao chão mais elevado, virá com calma e observação. Você primeiro precisa conhecer as nuances e detalhes do degrau em que você se encontra. Vai demorar um bom tempo para você se acostumar com cada novo degrau.
Mas não tenha medo. Continue subindo, não se conforme em voltar para aquele piso frio em que você dormia.
Suba a escada, com toda a dificuldade que você encontrar. E aquela escuridão do fim da escada, do segundo andar, pode ser que te recompense com o cair do véu do mistério ali existente.