"Essa conjunção de formas supermodernas com arcaísmos incríveis está em toda parte, nas grandes cidades brasileiras. Mas ela não está só fora, está sobretudo dentro da cabeça. O comportamento e a linguagem revelam isso muito bem. Penso, por exemplo, num enunciado tão corrente na vida brasileira, que é o famoso: 'você sabe com quem está falando?' A análise que o Roberto da Matta faz dessa frase mostra o quanto a noção de indivíduo é pejorativa no Brasil. Pois o 'você sabe com quem está falando?' revela o inverso do que diz a frase americana 'quem você pensa que é?' ou o enunciado francês 'por quem você se toma?' Nos dois últimos casos, a pergunta indica que a regra fundamental é a igualdade, que todos têm os mesmos direitos, e que, portanto, aquele que pensa que é superior deve abdicar de sua pretensão. No caso de 'você sabe com quem está falando?' dá-se o contrário: a frase coloca quem a usa numa posição superior, instaurando imediatamente a hierarquia e a desigualdade social. É que, no Brasil, a pessoa parece ser mais importante que o indivíduo, pois ser indivíduo é um estigma, é ser anônimo, é ser um 'zé ninguém'.
A frase 'você sabe com quem está falando?' permite precisamente a passagem do indivíduo à pessoa. Isto é, do terreno da impessoalidade das relações capitalistas para o sistema hierárquico e autoritário das relações pessoais, para o território do favor, da consideração, do respeito, do prestígio, com seus figurões, seus medalhões, seus padrinhos, seus pistolões, etc. Nesse sentido, o que torna alguém pessoa, o que lhe dá identidade social não é apenas o critério econômico, mas também, e sobretudo, as relações pessoais. São pessoas aqueles que contam; como revela o dito: 'quem tem sapato se conhece'. E entre quem se conhece, não se pergunta 'você sabe com quem está falando?', pois todo mundo já conhece o seu lugar.
Assim, no Brasil convivem e conjugam-se num mesmo drama dois mundos: o mundo das pessoas, onde todos são 'gente', de uma ou de outra maneira acima da lei, mundo das relações sociais personalizadas que possui um código altamente elaborado. E quem desconhece esse código, corre o risco de ser inferiorizado, colocado em seu 'devido lugar' ao receber pela frente um 'você sabe com quem está falando?' Por outro lado, há o mundo de indivíduos, impessoal, regido pela lei igualitária e universalizante. Como afirma Roberto da Matta: 'as leis só se aplicam aos indivíduos e nunca às pessoas'."
Laymert Garcia dos Santos, no livro "Cartografias do Desejo"